[Esta matéria foi escrita por Thais Folego para AzMina, em novembro de 2019. O conteúdo está sendo reproduzido aqui com autorização da revista, que permite a repostagem dos textos. Clique para ver o texto original]

Não basta apenas reconhecer o racismo, é necessário ser aliada da luta antirracista. Como? Reconhecendo seus privilégios e respeitando as vozes negras

Desde que entrei na Revista AzMina, minha prioridade tem sido pautar, escrever e editar reportagens que falem sobre e com mulheres negras – e que sejam escritas e ilustradas igualmente por mulheres negras. Mas nesse mês da Consciência Negra eu quero falar com as mulheres brancas.

E proponho começar com uma pergunta: nos lugares que frequenta, você se incomoda quando não há nenhuma pessoa negra? Ou que as únicas pessoas negras sejam as que estejam te servindo ou limpando?  Minha pergunta é baseada na seguinte estatística: 55,8% da população brasileira é composta por pessoas negras (soma de pretos e pardos, segundo a classificação do IBGE). Como, então, pode um espaço ser frequentado apenas por brancos? Veja bem, não estou perguntando se você já reparou nesse “fenômeno”, mas se você realmente se incomoda, se isso te causa mal estar, se você fala sobre isso na mesa do bar com as amigas. 

Se incomodar é um primeiro passo para se tornar aliada da luta das mulheres negras. “Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, ensina a filósofa Angela Davis, que esteve no Brasil no mês passado.

Como ser aliada? 

A pedagoga Carla Souza dá a cartilha para ser uma aliada das mulheres negras: reconheça seus privilégios, dialogue entre os seus sobre atitudes racistas, respeitem nossas vozes (não nos interrompa quando estivermos falando), ceda o protagonismo. “Não queremos protagonismo único como vem sendo feito há séculos pelos povos colonizadores, queremos ampliação de narrativas. Sobre nossas pautas falamos nós”, afirma Carla em artigo do site Blogueiras Negras. As mulheres negras estão propondo esse diálogo. Recomendo o livro que a filósofa e ativista Djamila Ribeiro acaba de lançar, Pequeno Manual Antirracista, onde em dez lições breves ela explica as origens do racismo e como combatê-lo. 

Enquanto mulher negra de pele clara, filha de pai preto e mãe branca, muitas vezes eu sou a única negra em muitos rolês – ainda que muitas pessoas não me enxerguem assim (mas essa problematização é papo para outro dia). E vou te dizer, isso é muito incômodo. É muito incômodo “estar sozinha”

As pessoas que se parecem fisicamente comigo nesses espaços são a tia do café, a tia da limpeza, a empregada doméstica, a garçonete. Normalmente o nome dessas pessoas nem é perguntado – é a tia, a moça. Nenhum problema em exercer essas profissões. O problema é quando elas são destinadas apenas às mulheres negras. O problema é quando são a única opção de atividades com remuneração. 

Repare que o trabalho doméstico é uma história que se repete nas famílias negras por gerações, com avós, filhas e netas nessa função. Esse ciclo está começando a ser quebrado com o ingresso da população negra nas universidades graças à política de cotas raciais.

Clique na imagem para ver as orientações.

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Raça é fundamento, não recorte

Há quem argumente que o problema do Brasil é social, não racial. Vou explicar porque não é. Melhor, vou usar uma frase da educadora Erica Malunguinho, hoje deputada estadual por São Paulo. “Classe é uma consequência de raça em territórios como o Brasil. Raça é o fundamento da nossa sociedade, não é recorte”, disse em um dos eventos na Aparelha Luzia, espaço de convivência negra em São Paulo.

Mas o que é fundamento? Numa construção é o alicerce, a base de uma casa. Troque a “casa” pelo “Brasil” e fica mais fácil entender: 300 anos de escravidão no Brasil estabeleceram raça como a base sobre a qual o país foi construído. E dessa base deriva a posição que as pessoas pretas ocuparam na sociedade brasileira ao longo da história até hoje. 

A história da minha família é um ótimo exemplo de como o racismo move as engrenagens da sociedade e da economia do país desde sempre. E como ele perpetua as violências da escravidão. Como eu disse, a família do meu pai é negra e a da minha mãe é branca. 

A família da minha mãe é descendente de italianos, com uma história bem parecida com a da novela Terra Nostra (quem lembra do casal Matteo e Giuliana?). Meus tataravós se conheceram no navio, se apaixonaram, a mina desembarcou grávida no Brasil e eles se casaram. Viveram do trabalho em fazendas de café que o Estado brasileiro garantiu a esses imigrantes. Isso permitiu à minha família branca estrutura mínima para que permanecesse unida e tivesse condições básicas de sobrevivência. O mesmo não foi garantido à minha família negra.

(Imagens: Estúdio Rebimboca/AzMina)

(Imagens: Estúdio Rebimboca/AzMina)

Esses imigrantes foram trazidos para substituir o trabalho de negros escravizados após a “abolição” da escravidão. Ou seja, o trabalho dos ancestrais da família do meu pai, que não tiveram políticas públicas voltadas ao trabalho e moradia, após serem separados de suas família e escravizados por três séculos no Brasil. Como todas as famílias negras, a minha ainda está superando as consequências do trauma e da política de exclusão e extermínio. E veja bem, isso não leva anos para superar, mas GERAÇÕES. Mais do que de condições financeiras e sociais, estou falando de estrutura familiar e afetos. 

Parece coisa de livro de história, mas meu pai tem a escravidão em suas memórias de infância. Ele lembra de sua bisavó, mulher escravizada, já velha, em sua cama, penteando seus longos cabelos brancos. Ao deixar de cobrir suas costas, os cabelos expunham as marcas de açoites. 

Foi só em 2001 (portanto, 113 anos após a assinatura da Lei Áurea) que o Estado reconheceu que deveria fazer políticas de reparação e ações afirmativas para a população negra. Foi nos anos seguintes que a história afro-brasileira entrou para a política nacional de ensino, que foi estabelecida uma política de saúde para a população negra, que foram implementadas cotas raciais nas universidades.

Pois bem, temos avançado, sobretudo porque o povo negro desenvolveu tecnologias avançadas de resistência. Mas ainda não é o suficiente. E não estamos propondo uma inversão de posições. Não queremos tomar o lugar de privilégio. Queremos é uma sociedade em que todos tenham direito à vida, e uma vida digna. E podemos ter aliadas nessa luta.

[Veja o texto original]

(Imagens: Estúdio Rebimboca/AzMina)

(Imagem: Kiana Bosman no Unsplash)

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